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Conto de Mistério: Na Órbita de uma Decisão

Conto protagonizado por Miri Bor, personagem de “Na Órbita do Crime”. Possíveis spoilers do jogo.



Essa rodada não estava indo nada bem.


Ela deveria ter escolhido fazer uma optativa na maternidade em Yorkin, onde uma antiga amiga da sua mãe trabalhava, como seus pais sugeriram. Não que Miri tivesse algum interesse em obstetrícia ou em bebês, muito pelo contrário, ela tem certeza de que já viu bebês o suficiente nascerem para uma vida inteira. Mas, pelo menos, ela estaria em Terranova agora. Mesmo ficar em sua cidade, algo que antes parecia nem mesmo ser uma opção de tão tedioso que soava, agora parece uma maravilha.


Mas não, ela quis se aventurar. Então, entrou em contato com vários hospitais e aceitou a primeira oferta que veio, pulando para um planeta próximo sem nem pensar duas vezes. Agora, estava sofrendo com as consequências de suas próprias ações.


Essa não era sua primeira viagem inter-planetária. Sua família tinha uma boa condição financeira e ela já tinha saído do planeta outras quatro vezes durante suas duas décadas de vida. Mas aqui não era Tehiri com suas águas rosas, muito menos as florestas aéreas de Yeluna. Definitivamente não era Terranova.


Não. Ela estava em Zakoa, um pequeno planeta que, apesar de ficar no mesmo sistema de Terranova, parecia estar a galáxias de distância. A população humana estava toda concentrada em uma pequena região do polo sul, a única do planeta com uma temperatura passível de vida. As estruturas das cidades eram horrorosas, com muito metal e pouca vida. Os muros eram enormes para evitar que as espécies nativas invadissem e, por consequência, evitava que os humanos saíssem. Os poucos que ousavam pisar fora dos muros na comunidade humana logo eram lembrados porque eles estavam confinados naquele pequeno pedaço do polo.


Após quatro semanas em Zakoa, Miri estava entendendo muito bem por que alguém iria tentar fugir para uma parte que, comprovadamente, não era possível ser habitada por humanos. A verdade é que qualquer coisa parecia melhor do que aquilo. A densidade demográfica era maior do que qualquer região de Terranova, a poluição do ar era tão grande que, se você não usasse uma máscara purificadora ao sair na rua por alguns dias, seu pulmão ficava comprometido pelo resto da vida, a comida era escassa e qualquer produto normal custava cinco vezes mais do que em Terranova.


Zakoa era um caos e Miri só queria chorar toda vez que pisava no hospital.



Quando ela começara a estudar medicina, ela achava que faria alguma diferença na vida de alguém. Mas na prática muitas vezes não havia nada o que fazer. Ela já estava desestimulada a continuar com o curso antes mesmo de vir para Zakoa, mas agora tudo parecia ainda mais sem sentido. Qual era o ponto de ir até ali só para ver os médicos dizerem que o tratamento não estava disponível nesse planeta?


Não era nem para ter humanos vivendo em Zakoa! A S.E.H, entidade que coordenava todos os governos locais em planetas que haviam vida humana, deveria ter realocado a população que habitava Zakoa há séculos. Mas claro que a S.E.H estava mais preocupada em criar conflitos com outras espécies, financiar expansões para outras galáxias e encher o próprio bolso com festivais ridículos, enquanto milhares de humanos morriam em planetas inabitáveis.


Era exatamente por esse tipo de comportamento que tantas outras espécies queriam distância dos humanos. Miri já tinha até mesmo ouvido falar de facções humanas que iam para planetas onde a S.E.H ainda não tinha alcançado e viviam em harmonia com outras espécies. Nos dias em que se sentia mais desesperançosa, ela imaginava como seria fugir para um planeta assim.

Seu turno acaba no meio da noite. Alguma noite. A rotação de Zakoa era muito mais rápida do que a de Terranova e os humanos aqui utilizam a marcação de horas como se estivessem em outro planeta, ignorando completamente as posições das estrelas. Miri tem certeza que isso contribui para a sensação de insanidade coletiva.


Ela está sentada na sala dos médicos, esperando que ninguém venha brigar com ela, questionar o que ela está fazendo ali quando é apenas uma interna. Mas seu trem só vai passar daqui a meia hora e ela não quer ficar sentada na estação esperando. Ela aproveita e vê as mensagens que recebeu enquanto trabalhava. Alguns amigos querendo notícias, algumas informações sobre a faculdade, e sua mãe perguntando mais uma vez se ela conseguiria ir para casa para a Pêssach. Com a proximidade com Terranova, ela só precisaria de dois dias de folga para ir para casa a tempo do sêder e voltar, mas Miri estava procrastinando conversar com sua chefe sobre isso.


A S.E.H não apoiava feriados religiosos e ela precisaria preencher vários formulários... E, ainda por cima, não parecia certo simplesmente abandonar todas essas pessoas ali. Por mais que ela não pudesse fazer muito como estudante, pelo menos estava ali. Como ela poderia simplesmente embarcar em uma nave e ir para Terranova quando tantas pessoas ali matariam para ter a chance de ir para outro planeta e sair dali?


“Dia difícil?” Alguém pergunta, fazendo com que Miri perceba que não está mais sozinha na sala. É Taiana, uma médica mais velha, não é quem está responsável por ela, mas elas já tiveram algumas conversas e se veem frequentemente pelos corredores do hospital.

“Quando não é aqui?” Miri fala antes mesmo de pensar, ela não quer ofender os moradores de Zakoa, mas Taiana apenas ri e concorda com a cabeça, observando-a com atenção. “Só queria que tivesse mais que pudesse fazer.”



Taiana fica em silêncio por um tempo, seu olhar não deixando-a por um segundo.


“Você é de Terranova, não é?” Taiana pergunta e, mesmo após Miri fazer que sim, não continua a conversa, apenas continua a analisar a estudante. “Seu turno acaba agora, certo? Se importa se eu acompanhá-la até a estação? As coisas ficam meio vazias por aqui a essa hora.”


Não é exatamente verdade, tem sempre alguém passando pelos arredores do hospital, mas Miri não questiona. As duas apenas andam em silêncio, uma do lado da outra até a estação. Miri não entende direito o que está acontecendo, quer preencher o silêncio com algum tópico inútil, mas algo no semblante da médica a impede.


“Tem algo que você pode fazer, caso esteja interessada em ajudar,” Taiana diz finalmente, quando elas já estão se aproximando da estação.


“Claro que estou,” Miri franze as sobrancelhas, não entendendo a direção da conversa.

“Pode não ser exatamente legal... Você teria algum problema com isso?”


O coração de Miri palpita dentro de seu peito. Ela precisa parar para pensar no que isso significa. Ela quer ajudar os outros, é claro que quer, e estava reclamando sobre como se sentia impotente... Mas ela nunca fez nada muito contra a lei. Não é totalmente inocente, sua família continua praticando judaísmo mesmo quando a S.E.H diz que nenhuma prática religiosa fora a Religião Oficial é permitida. Mas ela tinha uma boa situação econômica e morava em uma região de Terranova onde ninguém ligava muito para essa lei, muitos seguiam práticas religiosas e descumpriam várias pequenas regras da S.E.H e ninguém se importava muito, o risco de denúncia era baixa e, mesmo se fossem pegos, teriam apenas que pagar uma multa.

Não é a mesma coisa que se arriscar de verdade e Miri não sabe o que Taiana vai pedir a ela. O que ela estaria aceitando.


“Qualquer lei que impeça pessoas de serem ajudadas não vale a pena ser seguida,” Miri diz depois de algum tempo, concluindo sua reflexão interna. “O que você tem em mente?”

“Ajudar às vezes necessita algum sacrifício. Não se preocupe, não vamos te pedir para fazer nada que você não esteja preparada. Pense no assunto,” Taiana para por um momento, se apoiando na parede da estação e anotando algo em um papel. “Tire alguns dias para refletir sobre o assunto, se ainda estiver interessada vá a esse endereço durante as horas da noite. Diga que a Taiana mandou você, eles vão estar te esperando.”


Miri pega o papel e lê o que está escrito, é um endereço do centro da cidade, não é difícil de encontrar. Quando levanta os olhos novamente, Taiana já está de costas para ela, andando de volta para o hospital. Miri pensa em gritar seu nome ou correr até ela, ela tem muitas perguntas para fazer e não tem certeza se quer simplesmente ir até um endereço desconhecido. Se ela contasse isso para sua mãe, ela iria ouvir um discurso sobre como é assim que meninas acabam sendo mortas.


Ela vai de volta para o apartamento que está alugando e tenta ignorar o papel. Ela só precisa seguir sua vida como sempre seguiu. Ignorar a ânsia de querer fazer algo mais, aceitar que vai só seguir a faculdade como planejou, fazer residência no que parecer menos entediante e viver sua vida em Terranova igual a sempre. Por que não? Era o que todos estavam fazendo, ela não era especial.



Mas ela continuava a ver Taiana nos corredores no hospital e, por mais que a médica nunca tenha dito mais nada para ela, Miri não pôde deixar de sentir a curiosidade aumentando. Será que ela não estava deixando uma oportunidade passar? E se houvesse mais na vida do que só aquilo?


Quase uma semana no calendário de Terranova se passa até ela tomar coragem. Ela finge para ela mesma que vai só olhar o prédio, ver o que é esse endereço. Ela franze a testa ao perceber que é uma loja de roupas, uma franquia de lojas que tem em diversos países, com valor acessível e moda razoável. Essa loja em especial não é muito grande, mas certamente não é o comércio pequeno e escondido que ela imaginou. Não parece um lugar onde assassinos se encontram.


A loja não tem vendedores, apenas um robô para tirar dúvidas e outros para realizar a compra, como a maior parte das lojas mais baratas. Miri não vê nenhum humano ou outro ser sapiente trabalhando, apenas pessoas olhando as roupas e parecendo ser clientes como ela. Ou não como ela, no caso.


Ela quase vai embora, mas fica mais um tempo olhando as roupas, pensando se tinha de alguma forma se enganado quanto ao local. Como uma última tentativa, ela se aproxima de um dos robôs.


“Boa noite! Posso ajudá-la com alguma coisa?”


“Boa noite, a Taiana me mandou aqui,” ela fala, se sentindo um pouco boba. Muitos robôs possuíam inteligência artificial, mas os robôs empregados só costumavam entender comandos específicos.


“É claro! Por favor, me acompanhe.”


A fala do robô a surpreende tanto que ela olha para os lados, verificando se não estão pregando alguma peça nela. Quando o robô começa a andar em direção aos fundos da loja, Miri resolve acompanhá-lo. Ele a leva até uma porta que ela imagina que dê no depósito da loja, abrindo-a de forma remota. Dentro, parece um depósito normal e Miri fica confusa.


“Seja bem-vinda. Alguém logo virá recebê-la,” o robô diz assim que ela passa pela porta, e então faz seu caminho de volta, a porta se fechando automaticamente quando ele sai.


Alguns segundos se passam sem nada acontecer e Miri sente o desespero começar a surgir, e então uma das estantes de move e uma nova porta abre, uma senhora idosa a encarando do outro lado. A senhora sorri para ela.


“Miri, certo? Já estava achando que você nunca apareceria!”


“Que lugar é esse? A Taiana disse que nós poderíamos conversar sobre como eu posso ajudar, mas eu não estou entendendo nada.”


“Desculpe pelo mistério, nós nunca podemos ter cuidado o suficiente. Aqui é nossa base de operações em Zakoa... O único lugar seguro para conversarmos com segurança.”


“Base do quê?”


“Diga-me, você já ouviu falar da Divisão?”


Miri não tinha, mas ao final daquele dia, após horas de testagens, ela saberia tudo o que precisaria saber. Ela saberia sobre as rebeliões e sobre tudo o que a S.E.H estava tentando esconder. Saberia o que seria esperado dela. Saberia também que a qualquer sinal de que ela fosse uma espiã da S.E.H e não estivesse de acordo a missão, sua memória daquele dia seria apagada com tecnologia que a Divisão roubou e que nunca iria saber de mais nada.

Mas ela não tem nenhuma intenção de esquecer.


Ela entrou naquela loja confusa, seguindo uma última esperança de que houvesse algo mais na vida do que aquilo. Mas ela sairá fazendo parte de uma organização secreta com o objetivo de tirar a S.E.H do poder, trazendo de volta a liberdade para as colônias humanas.

Ela encontrou seu propósito.


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